Por Luiza Rampelotti
O auditório da Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) recebeu, na última quarta-feira (21), uma audiência pública que escancarou uma realidade histórica: o abandono das comunidades remotas do litoral paranaense pelo sistema público de saúde. Com o tema “Uma Só Saúde em Comunidades Remotas do Litoral do Paraná”, o encontro foi proposto pelo deputado estadual Goura Nataraj (PDT) e reuniu pesquisadores, profissionais da saúde, representantes de universidades, movimentos sociais e gestores públicos.
A audiência evidenciou o papel essencial das universidades e de projetos voluntários, como o Barco Sorriso, Saúde nas Ilhas, Cirurgilhas e Barco Saúde Única, todos vinculados à Universidade Federal do Paraná (UFPR), à Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e a organizações da sociedade civil, que têm atuado aonde o Estado não chega. De um lado, iniciativas que ofertam consultas, pequenas cirurgias, atendimento odontológico e até confecção de próteses. De outro, um poder público ainda incapaz de garantir energia elétrica, transporte e infraestrutura básica para populações indígenas, caiçaras e quilombolas isoladas.
Diagnóstico de abandono
Na abertura, o deputado Goura lamentou a falta de presença efetiva do Estado em territórios onde o acesso aos serviços básicos ainda é precário. “Nós vemos uma série de carências no acesso a políticas públicas nesses territórios. A gente fala aqui às vezes até de territórios que estão muito próximos do centro urbano de Paranaguá, mas que não conseguem acessar alguns serviços básicos de saúde”, disse.
Ele citou comunidades como Barbados, Sebuí, Ararapira e Fátima, em Guaraqueçaba, que sequer têm energia elétrica, o que compromete desde tratamentos simples até ações emergenciais. “A gente sabe de oito comunidades que até hoje em dia não têm acesso à energia elétrica. Para situações de saúde, isso é uma situação que coloca em risco a vida das pessoas”, citou.
O deputado também destacou a aprovação recente da Lei da Pesca Artesanal e o avanço do Projeto Território Caiçara, que será tema de nova audiência no dia 5 de junho, como exemplos de que é possível desenvolver políticas específicas para a região – “desde que haja vontade política e escuta ativa das comunidades tradicionais”.
Saúde nas Ilhas
Um dos momentos mais emocionantes da audiência foi a apresentação do projeto Saúde nas Ilhas, coordenado pela professora Fernanda Moura, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atuando nas comunidades de Guaraqueçaba e Ilha do Superagui desde 2022, o projeto leva estudantes de enfermagem e medicina para desenvolver ações de prevenção, educação em saúde e atendimento clínico básico.
“Mais do que números, o Saúde nas Ilhas representa transformação. Escuta, respeito e presença. Porque promoção de saúde também é um ato de justiça social”, afirmou a professora Fernanda.
Entre as atividades, estão oficinas sobre primeiros socorros, doenças crônicas como hipertensão e diabetes, saúde da mulher, educação sexual e alimentação saudável. Além disso, mais de 90 adolescentes estão sendo formados como brigadistas escolares, numa ação que une prevenção e protagonismo juvenil.
Segundo Fernanda, a formação ética e humanizada dos futuros profissionais de saúde também é um ganho direto da iniciativa. “Eles aprendem a respeitar o território, as crenças e a cultura local”, disse.
Cirurgilhas
Responsável pelo projeto Cirurgilhas, a médica e professora Silvania Pimentel mostrou, com dados, o impacto direto das ações realizadas nas comunidades de Guaraqueçaba. “O nosso programa iniciou as ações de campo em 2023. Ele tenta aliar o ensino, a pesquisa e a extensão, mas uma extensão que resolve. Nós vamos aonde o paciente precisa, onde ele necessita, e resolvemos o problema dele. Nós diagnosticamos e resolvemos”, destacou.
A médica relatou que já foram feitos mais de 550 procedimentos entre pequenas cirurgias de pele, remoção de cistos, verrugas, unhas encravadas, reconstruções de lóbulo auricular e até blefaroplastias em pacientes com pálpebras que comprometem a visão. Muitas dessas cirurgias ambulatoriais foram realizadas com anestesia local.
“É incrível. Tem pacientes que vêm para a nossa consulta remando. Eles dependem muitas vezes da maré para voltar. Nós priorizamos esses pacientes e operamos no mesmo dia”.
Emocionada, Silvana compartilhou o caso de um jovem com câncer de pele próximo ao olho. “Se não tivéssemos atuado, ele perderia a visão. E tudo foi feito com anestesia local, em uma unidade básica, com custo irrisório para o município. É isso que defendemos: resolutividade”, disse, orgulhosa.
A médica também defendeu a criação de um barco hospital, que permita a realização de cirurgias com mais complexidade de forma itinerante. “Não faz sentido construir hospitais em comunidades com pouca densidade populacional. O barco hospital resolveria isso com eficiência e dignidade”, argumentou.
Barco Sorriso
O Instituto Barco Sorriso atua há quase 12 anos nas comunidades caiçaras e foi representado por sua presidente, a médica Roseane Fomenti. Ela denunciou a situação da saúde bucal infantil no litoral paranaense.
“É uma honra para a gente estar aqui representando dezenas de coordenadores, centenas de voluntários e milhares de pacientes que, ao longo de quase 12 anos, têm sido impactados pelas ações do Instituto Barco Sorriso nas comunidades do Litoral do Paraná”, começou.
Um levantamento feito pelo projeto em Guaraqueçaba mostrou que 60% das crianças já sentiram dor de dente e 81% têm cáries na dentição de leite. “Esse número é três a quatro vezes maior do que a média nacional. […] São crianças com dor crônica, sem acesso ao serviço odontológico regular, vivendo com um problema totalmente previsível”, informou.

Ela relatou que, em apenas três ações realizadas este ano, o projeto atendeu mais de 340 pacientes com entrega de medicamentos e 53 próteses dentárias confeccionadas no local. “Fizemos mais de 200 atendimentos odontológicos, 715 procedimentos realizados, mais de 340 atendimentos médicos, com distribuição gratuita de mais de 500 medicamentos, e fizemos 53 próteses confeccionadas e entregues à comunidade no dia seguinte”, detalhou.
Barco Saúde Única
O veterinário e professor Aaronson Ramathan, coordenador do projeto Barco Saúde Única, trouxe à audiência a visão integrada entre saúde humana, animal e ambiental. A proposta do projeto é combater doenças zoonóticas e promover equilíbrio ecológico.
“Saúde Única é um olhar indissociável da relação entre a saúde do ambiente, dos animais e das pessoas. Porque as doenças estão no ambiente, passam para os animais e depois para as pessoas, enquanto zoonoses”, disse.
Aaron destacou que o projeto atua com castração, vacinação e educação ambiental e que já identificou taxas altíssimas de toxocaríase, uma zoonose grave, em moradores do Litoral. “Mais de 60% das pessoas testadas apresentam soropositividade para toxocaríase. É um dado alarmante”.
Projeto Aproxima
Também esteve representado na audiência o Projeto Aproxima, uma iniciativa da Justiça Federal do Paraná voltada à interiorização e à democratização do acesso à justiça em regiões vulnerabilizadas. A servidora Kelly Cristina Laurentino apresentou a proposta, que atua em cooperação com instituições públicas e universidades.
Por meio do projeto, que desde março do ano passado já atendeu cerca de 1600 famílias, são realizadas ações integradas que vão além da judicialização, promovendo cidadania, educação em direitos, mediação de conflitos e articulação de políticas públicas. Embora o foco do Aproxima não seja a assistência direta em saúde, Kelly reforçou que a vulnerabilidade dos territórios do Litoral demanda uma atuação transversal.
“A gente precisa olhar para essas populações a partir de uma abordagem de direitos. É fundamental estarmos presentes, não só como instância judiciária, mas como parte de uma rede que protege e reconhece a dignidade dessas comunidades. Por isso, convidamos diferentes instituições e levamos às ilhas órgãos como Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Defensoria Pública do Estado (DPE-PR) e da União (DPU), Fiocruz, Receita Federal, Procuradoria”, disse.
O papel da universidade
A vice-reitora da UFPR, professora Camila Girardi Fachi, destacou que os projetos de extensão são a principal ponte da universidade com a sociedade. Com mais de mil ações em curso, a UFPR atua em sete cidades e mantém três unidades no Litoral: UFPR Litoral (Matinhos), Centro de Estudos do Mar (Pontal do Paraná) e o Museu de Arqueologia e Etnologia (Paranaguá).
“O que temos são projetos com excelência, mas sem orçamento. Falta investimento para transformar ações pontuais em políticas públicas contínuas. Estamos abertos a parcerias, inclusive com as prefeituras”, declarou.
Ela anunciou que a instituição está criando uma Liga de Saúde Indígena e um curso de pedagogia para moradores da Ilha da Cotinga. No entanto, citou desafios orçamentários que dificultam a realização dos projetos.
Desafio diário
A audiência também reuniu servidores de diferentes esferas do Poder Público. Cleide de Fátima Padilha, enfermeira da prefeitura de Guaraqueçaba, afirmou que há moradores longínquos que ficam a quatro horas do único hospital instalado na cidade. “Esses projetos estão melhorando a qualidade de vida em comunidades que não tem acesso“, disse.
Patrícia Scacalossi, secretária de Saúde da Prefeitura Municipal de Paranaguá, utilizou o seu tempo de fala para destacar iniciativas municipais que transportam enfermeiros e técnicos de enfermagem para atender as comunidades marítimas e a Ilha do Mel. Elas também entregam medicamentos, evitando que os ilhéus tenham que se locomover até o continente.
“Muitas vezes, os moradores eram atendidos nas ilhas, mas não vinham às unidades para buscar tratamento ou medicamento. Não havia mudança na condição de saúde“, lembrou. “Hoje temos dificuldade em relação a médicos especialistas. Procuramos priorizar a atenção primária, evitando assim que os problemas se agravem e aumentem as longas filas de especialidades“.
Propostas e compromissos
Ao fim da audiência, o deputado Goura anunciou uma série de encaminhamentos concretos. Um dos principais será a articulação de uma reunião com o secretário estadual de Saúde, Beto Preto, com a participação direta dos coordenadores dos projetos apresentados. “Vamos marcar uma reunião, vou convidar os representantes dos projetos para conversar pessoalmente com o secretário Beto Preto. A solução, no curto, médio e longo prazo, é transformar esses projetos em uma permanência de atuação no território”, afirmou.

Entre as propostas debatidas está a criação de um barco hospital, defendida pela médica Silvana Pimentel como uma alternativa viável e eficiente para realizar procedimentos especializados em comunidades onde a instalação de unidades fixas é impraticável. A proposta prevê uma construção colaborativa, em parceria com a Universidade Federal do Paraná, a Defensoria Pública, o ICMBio e os municípios litorâneos.
Outros encaminhamentos incluem a formação de uma rede de apoio logístico para garantir transporte, combustível, alimentação e hospedagem das equipes voluntárias; e a implementação de sistemas de telemedicina voltados ao atendimento contínuo das populações insulares e de áreas de difícil acesso.
Como destacou Goura no encerramento da audiência, o desafio que se impõe ao Estado é de presença, e não de improviso. “Essas comunidades não precisam de favores, precisam de presença. A saúde é um direito, e não pode mais ser tratada como exceção”, concluiu.
*Com informações da ALEP












