Por Luiza Rampelotti
O abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes são violências que crescem no silêncio – dentro das casas, nas sombras das relações de afeto, atrás de portas que deveriam proteger. São crimes difíceis de enxergar e, muitas vezes, ainda mais difíceis de denunciar. A dor, quando finalmente é dita, já percorreu um caminho longo e solitário.
Foi sobre essa realidade que o delegado Emanuel Brandão conversou com a Ilha do Mel FM nesta sexta-feira (16). À frente do Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes (NUCRIA), em Paranaguá, ele falou sobre os desafios diários do enfrentamento a essas violações e a importância da escuta qualificada, da rede de proteção e da conscientização social para romper com o ciclo da violência.
Maio Laranja, campanha nacional que marca esse esforço coletivo, não nasceu por acaso. É uma resposta à impunidade e uma homenagem à memória de Araceli Crespo, uma menina de oito anos sequestrada, violentada e assassinada no Espírito Santo, em 1973. Seus agressores, homens influentes, jamais foram responsabilizados. “Maio não foi escolhido por acaso”, afirmou o delegado. “É uma resposta à impunidade, uma escolha de memória e de compromisso”.
O que os números não mostram
De acordo com o delegado, os dados oficiais são apenas uma rachadura na superfície de um problema muito maior. “Só 8,5% dos crimes de abuso sexual são denunciados. O que chega até nós é só a ponta do iceberg”. Em 2024, o NUCRIA instaurou 70 inquéritos por estupro de vulnerável em Paranaguá. Dez por exploração sexual. Mas o delegado reconhece: o número real é infinitamente maior.
E há uma razão perversa para esse apagamento. “Em 90% dos casos, o abusador é alguém do convívio direto da criança. É pai, padrasto, avô, tio. Gente que ela chama de família. Às vezes, até a mãe se cala — por dependência econômica, afetiva, por medo ou conveniência. A omissão também é violência”, disse.
Não se trata, portanto, de um crime cometido por estranhos em vielas escuras, mas por rostos conhecidos, dentro de casa.
O silêncio das vítimas, a escuta dos investigadores
Diferente de outras investigações policiais, no NUCRIA o trabalho começa com algo que não se pode colher com perícia técnica: a palavra da vítima. “Na maioria das vezes, não há testemunhas. Não há câmeras. Só o relato daquela criança e o silêncio de quem deveria protegê-la. Por isso, nosso papel é dar verdade a essa palavra”, diz o delegado.

Para isso, são ouvidos professores, familiares, vizinhos, todos os que possam confirmar o que a criança revelou. “Procuramos sinais indiretos: mudança de comportamento, crises de pânico, automutilação, queda no rendimento escolar. Cada detalhe ajuda a reconstruir uma verdade que o crime tentou apagar”.
Quando o corpo fala
Segundo Brandão, os sinais variam conforme a idade da vítima. “Uma criança pequena pode apresentar regressão – volta a fazer xixi na cama, chupa chupeta, evita o toque ao ser trocada. As maiores se isolam, têm pesadelos, se recusam a visitar alguém que antes adoravam. Meninas ou meninos que antes eram expansivos, passam a viver trancados em seus quartos. Há uma ruptura no comportamento. O corpo fala, mesmo quando as palavras faltam”, explicou.
Mas o delegado faz um alerta: “Esses sinais não são, por si só, provas de abuso. São indícios. Precisam ser acolhidos com diálogo e atenção”.
A importância do acolhimento
A cidade de Paranaguá conta com um centro modelo: o CAICAVV – Centro de Atendimento Integrado à Criança e ao Adolescente Vítima de Violência. Lá, profissionais da Saúde, da Educação e da Assistência Social atuam juntos para garantir acolhimento físico, emocional e jurídico às vítimas. “Elas recebem acompanhamento psicológico, social, e, se necessário, são encaminhadas para abrigamento ou programas sociais”, explica Brandão.
Além disso, o delegado destacou a atuação da Defensoria Pública e do Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude (NEDDIJ), da UNESPAR, que oferecem suporte jurídico gratuito às famílias. “Há uma rede ativa. Mas ela só funciona quando o primeiro passo é dado: a denúncia”.
Como denunciar
Os canais são diversos: Disque 100, Conselho Tutelar, escolas, delegacia, Polícia Militar, Guarda Civil. Mas o delegado reforça: “Se o crime acabou de acontecer, ligue 190 ou 153. Se a revelação for posterior, leve a vítima à delegacia, ou acione o Conselho. E quem denuncia ao Disque 100 não precisa se identificar. O sigilo é garantido”.
Ações educativas: ocupando espaços, quebrando silêncios
Durante o Maio Laranja, o NUCRIA tem ocupado as ruas, empresas e escolas com ações de conscientização. Nos últimos dias, já estiveram em empresas portuárias, fizeram panfletagens no centro, conversas em escolas e reuniões com a rede de proteção em Morretes. Nesta semana, realizam uma blitz educativa na Praça dos Leões – “não é de fiscalização, é de conscientização”, como brinca o delegado.
Em Morretes, uma nova sala de atendimento especializado foi inaugurada na delegacia, sob coordenação do delegado André Rosa Silva. “Uma brinquedoteca pode parecer pequena, mas muda tudo. A forma como acolhemos uma vítima pode ser determinante para a investigação – e para a cura”.
Em Paranaguá, o NUCRIA também mantém uma brinquedoteca na Delegacia Cidadã. “Se a criança gosta de algum brinquedo, ela pode levar. Não precisa devolver. Já tivemos crianças que chegaram em prantos e saíram sorrindo”. Por isso, o delegado destaca que doações de brinquedos são bem vindas.
O que os pais podem fazer?
“Confiem nos seus filhos. Criem um ambiente onde eles se sintam seguros para falar. Olhem para eles, escutem os silêncios, respeitem seus sinais. E, ao mesmo tempo, permitam que vivam suas infâncias e adolescências de forma plena, sem redomas. Equilíbrio é a chave”, conclui o delegado.
Serviço | Onde denunciar
- Emergências: Polícia Militar (190) | Guarda Municipal (153)
- NUCRIA: Delegacia Cidadã de Paranaguá
- Conselho Tutelar: Atendimento direto à população
- Disque 100: Denúncia anônima e gratuita, 24h
- Escolas públicas e privadas: podem acionar a rede de proteção
- CAICAVV: atendimento integrado com psicólogos, médicos e assistentes sociais
- Defensoria Pública e UNESPAR/NEDDIJ: suporte jurídico gratuito








