Por Luiza Rampelotti
Na última quinta-feira (3), a Câmara Municipal de Matinhos realizou uma audiência pública que escancarou um problema que já está nas ruas – e, segundo muitos presentes, pode ser questão de tempo até resultar em tragédia. Com participação de vereadores, pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), gestores públicos, empresários e moradores, o encontro teve como objetivo discutir os impactos do uso crescente de ciclomotores, patinetes, bicicletas e outros veículos elétricos e motorizados no município, em especial entre crianças e adolescentes, e levantar propostas para regulamentar a circulação desses equipamentos.
A audiência foi proposta pelos vereadores Anderson da Silva dos Santos (MDB), Kayan Gusmão (Podemos) e Dornelles Silveira Lourenço (PRTB), o Nelinho Lourenço, e aprovada por unanimidade pela Câmara Municipal. A sessão começou com um alerta de Anderson, que relatou um episódio pessoal para justificar a urgência do debate. “Há poucos dias, meu filho de quatro anos quase foi atropelado no Pico de Matinhos por um ciclomotor que passava a uma velocidade altíssima. Esses veículos chegam a 80 km/h e estão sendo conduzidos por menores, sem qualquer regra. O que queremos aqui é prevenção”, afirmou.
O vereador Kayan Gusmão destacou que a audiência foi provocada por demandas populares e reforçou o papel da Câmara na construção participativa de políticas públicas. “Regulamentar é proteger, é garantir o uso responsável. Temos visto crianças pilotando ciclomotores que exigem habilitação e equipamentos de segurança. Precisamos de um regramento que una modernidade com responsabilidade”, pontuou.
Um abaixo-assinado, 202 vozes e um apelo por regulamentação
A professora doutora Isabel Cristina Martines, da UFPR Litoral, entregou à Câmara um abaixo-assinado com 202 assinaturas. O documento pede urgência na normatização do uso de motos elétricas na cidade. Segundo ela, a iniciativa surgiu da indignação coletiva com cenas recorrentes de risco.
“A gente vê adultos conduzindo motos com bebês de colo na frente e outra criança na garupa. Se dentro de um carro isso já seria perigoso sem cadeirinha, imagina em uma moto elétrica, sem cinto, sem capacete, sem proteção alguma”, criticou a professora, que também é pesquisadora da área de políticas públicas, esporte e lazer.
Isabel reforçou que não se trata de proibir o uso desses equipamentos, mas de criar regras para garantir um uso seguro. “É um avanço em termos de mobilidade urbana. Mas é preciso pensar em segurança e compartilhamento de espaço público. E, principalmente, em educação. Talvez uma campanha nas escolas que sensibilize pais e filhos, mostrando os riscos reais envolvidos”, sugeriu.
“Já temos leis. O que falta é estrutura”, diz secretário de Segurança
Responsável por uma apresentação técnica, o coronel Durval Tavares Júnior, secretário municipal de Segurança e Trânsito, argumentou que a maior parte das normas sobre o uso de ciclomotores e veículos autopropelidos já está prevista no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Segundo ele, o problema não é a ausência de lei, mas sim a falta de capacidade local para fiscalizar e aplicar as regras.
“Não vejo sentido em criar novas leis municipais se já temos tudo no CTB e nas resoluções do Contran. O que precisamos é de estrutura. E isso estamos construindo”, afirmou.
Tavares explicou que a municipalização do trânsito de Matinhos foi iniciada apenas em janeiro deste ano, mais de 30 anos após a criação da Guarda Municipal. Apesar do avanço, nem os guardas municipais nem os agentes de trânsito podem, até o momento, aplicar multas ou apreender veículos – porque ainda não têm poder de polícia administrativa.
“Hoje temos apenas um agente de trânsito em Matinhos. E nenhum integrante autorizado a autuar. Não podemos multar nem apreender veículos, mesmo quando vemos crianças de 6 anos pilotando scooters, como vi no rodeio de Pontal. Essa estrutura está sendo montada, mas leva tempo”, explicou.
O secretário anunciou que os cursos de capacitação da equipe começam nesta semana e que um convênio com a Companhia de Tecnologia da Informação e Comunicação do Paraná (Celepar) já foi assinado para viabilizar o sistema digital de autuação. A expectativa é que até o verão, o Município esteja apto a fiscalizar e aplicar penalidades.
Já o sargento Luiz Antônio Ramos, presidente do Conselho Comunitário de Segurança (CONSEG), defendeu que o Município pode sim legislar localmente sobre aspectos como limite de velocidade. “Na orla, 32 km/h é uma velocidade altíssima quando se está ao lado de pedestres com crianças ou cadeiras de praia. Podemos estabelecer regras mais seguras para esses espaços”, disse.
O que é o quê: diferença entre bicicleta elétrica, autopropelido e ciclomotor
Durante a exposição, o coronel Tavares detalhou as características técnicas dos principais tipos de veículos que hoje circulam pelas ruas de Matinhos:
- Bicicleta elétrica: motor de até 1000W, com pedal funcional, velocidade máxima de 32 km/h. Deve circular em ciclovias e ciclofaixas. Não exige CNH, mas recomenda-se o uso de capacete.
- Veículo autopropelido (ex: patinetes elétricos): até 1000W, até 32 km/h, pode circular em ciclovias e vias de até 40 km/h. Também sem exigência de CNH.
- Ciclomotor: motor até 50cc ou até 4000W, velocidade até 50 km/h. Só pode circular em vias públicas. Exige capacete, CNH categoria A ou ACC, emplacamento e registro.
Usuários conscientes também pedem espaço e segurança
Um dos depoimentos mais marcantes veio de Edilson Constantino da Silva Júnior, morador do Balneário Praia Grande e usuário de ciclomotor. “Eu tenho 49 anos, uso capacete, tenho habilitação há 30 anos. Mas não sei onde posso andar. Se vou para a via, os carros me xingam, me empurram. Se vou para a ciclovia, me dizem que estou errado. Onde é que a gente anda, então?”
Ele relatou usar o veículo diariamente para ir ao trabalho como zelador, percorrendo 15 km por dia. Disse que apoia a regulamentação, mas pede que a lei também considere os usuários conscientes, que utilizam o veículo como meio de transporte e não para lazer ou imprudência.
“Comprei esse ciclomotor para trabalhar. Mas hoje não vejo tranquilidade para usá-lo. Se for proibido, o que eu faço? E as crianças que andam de bicicleta comum, sem noção nenhuma, também são risco. Falta é educação para todos”, completou.
Campanhas nas escolas, controle social e formação cidadã
As professoras Suzane de Oliveira e Luize Moro, ambas da UFPR, defenderam que o caminho mais efetivo é o processo educativo permanente, não apenas com crianças, mas com toda a população.
“Estamos diante de um novo tipo de mobilidade urbana. Esses veículos são intermediários entre a bicicleta e a moto. A malha viária não foi feita para eles. Precisamos de educação para o trânsito, campanhas, controle social. A maioria da população nem sabe o que é permitido ou proibido”, afirmou Luíse.
Suzane, que atua na área de saúde coletiva, chamou atenção para o impacto dos acidentes sobre o sistema público de saúde. “A ausência de dados não significa ausência de acidentes. A subnotificação é enorme. E quando vier a temporada, com orla lotada, veículos não identificados, condutores despreparados, é uma bomba-relógio. Estamos na iminência de tragédias”, alertou.
Propostas concretas surgem no debate
Ao longo da audiência, surgiram diversas sugestões práticas que agora deverão ser avaliadas pela Câmara de Matinhos e pelo Executivo. Entre as propostas debatidas está a criação de uma cartilha educativa, com orientações claras sobre os tipos de veículos permitidos em cada espaço da cidade. Também foi sugerida a implantação de um cadastro municipal gratuito, vinculado ao CPF dos responsáveis legais por menores que utilizam patinetes e ciclomotores. Outro ponto de destaque foi a ideia de intensificar campanhas educativas nas escolas, com apoio da Universidade Federal do Paraná, por meio de projetos de extensão e distribuição de materiais informativos.
Como estratégia de maior impacto visual, representantes da segurança pública defenderam a realização de simulados de acidentes com encenação realista, a exemplo do que já foi feito em outras cidades do Paraná. Também se discutiu a possibilidade de estabelecer parcerias com o comércio local, incentivando a entrega de capacetes e folhetos educativos junto à venda de veículos elétricos. Por fim, foi apontada a necessidade de instalar outdoors ao longo da PR 508 (Alexandra–Matinhos), com mensagens voltadas à conscientização de moradores e visitantes.
Plano estruturado será apresentado em nova audiência
Ao tratar da importância da regulamentação, o comunicador Alex Ferreira ressaltou que políticas públicas eficazes muitas vezes passam despercebidas justamente por evitarem tragédias. “A tragédia ignorada marca uma cidade inteira. O acidente evitado ninguém vê. Mas ele é o verdadeiro sucesso de uma política pública bem-feita”, afirmou.
O vereador Juliano Leite (Republicanos) destacou que “novos problemas exigem novas soluções”, enquanto a vereadora Hirman da Saúde (Podemos) reforçou que “está na hora de a cidade crescer e evoluir. Temos que deixar de lado o medo político de desagradar. Temos que pensar no coletivo”.
Ao encerrar a audiência, o presidente da sessão, vereador Nelinho Lourenço, anunciou que será marcada uma nova rodada de discussão, desta vez com apresentação de um plano estruturado. “Agora que ouvimos a população e especialistas, é hora de sentar com a universidade, com os técnicos e apresentar propostas viáveis, que garantam segurança, mobilidade e respeito à vida”, finalizou.








