Por Luiza Rampelotti
Desde março de 2024, a Arena Vicente Gurski, em Matinhos, se tornou o ponto de encontro de mais de 40 alunos da Fundição Guará, projeto que oferece oficinas gratuitas de fundição de vidro. Todas as quintas-feiras, o espaço reúne jovens, aposentados, pessoas desempregadas e artistas iniciantes em torno de um forno a 700 graus, onde o vidro descartado ganha nova forma. Esculturas, joias, objetos decorativos e utilitários nascem do reaproveitamento de resíduos – e, com eles, novas perspectivas para quem busca aprender, empreender ou simplesmente pertencer.
Mas o que nasceu como oportunidade social e ambiental corre risco de desaparecer. O projeto tem data para deixar o espaço: 31 de junho. Se até lá não houver prorrogação oficial ou a oferta de um novo local, o ateliê terá de ser desmontado, e Matinhos poderá perder o único espaço do Litoral dedicado à reciclagem artística de vidro com fins educativos e comunitários.
Fechado por dois meses e liberado apenas por ofício
O impasse teve início com a troca de gestão na Prefeitura de Matinhos, assumida em janeiro de 2025 pelo prefeito Eduardo Dalmora (PL). Segundo a coordenadora e idealizadora do projeto, a designer e artista visual Désirée Sessegolo, a nova administração municipal solicitou a suspensão das oficinas logo no início do ano, alegando a necessidade de reavaliar os termos da parceria firmada com a gestão anterior.
“Nos pediram para manter o ateliê fechado enquanto analisavam contratos e documentos. Ficamos praticamente dois meses sem atividade, até depois do Carnaval”, relata em entrevista à Ilha do Mel FM.
O retorno parcial às atividades só foi possível após a apresentação de um ofício formal à Prefeitura, em que Désirée vinculava a continuidade do uso do espaço aos compromissos firmados via Lei Paulo Gustavo, que exige execução de projetos culturais já aprovados e em andamento. “Foi isso que garantiu que a gente pudesse continuar até o fim de junho. Depois disso, se não conseguirmos prorrogar ou encontrar um novo local, teremos que desocupar o espaço e o Poder Municipal ainda não apresentou nenhuma alternativa concreta para assegurar a continuidade das atividades”, alerta.
Da garrafa ao objeto de arte: o ciclo virtuoso da Fundição Guará
A Fundição Guará é um centro de transformação criativa do vidro, com sede em Matinhos e unidades em Morretes e Paranaguá (em implantação). O projeto surgiu em 2023 a partir de uma constatação alarmante: o vidro é o resíduo urbano menos reciclado do Brasil, com taxa de apenas 11%, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Resíduos Sólidos.
“É um material pesado, cortante, perigoso e com valor comercial quase nulo. Por isso, acaba sendo descartado de forma errada e raramente volta à indústria. Mas ao mesmo tempo, é um material nobre, puro, que dura milhares de anos. E pode ser reutilizado com altíssimo valor agregado se for trabalhado com técnica e arte”, explica Désirée.
É exatamente isso que o projeto ensina: a fundição artesanal do vidro, processo que exige conhecimento técnico, equipamentos especializados e, acima de tudo, paciência e sensibilidade. Por meio de fornos industriais, doados pela própria Désirée, e técnicas de lapidação, corte, fusão e moldagem, os alunos, todos gratuitamente atendidos, aprendem a criar com o que seria lixo.
Educação, renda e saúde mental
Mais do que oficinas de artesanato, a Fundição Guará se consolidou como um espaço de acolhimento e reconstrução de vidas. “Recebemos alunos com depressão, ansiedade, solidão. Pessoas que encontram aqui o que chamamos de ‘cura pela criação’. Temos alunas de mais de 70 anos e jovens com dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Gente que chega em silêncio e, semanas depois, está sorrindo e expondo suas peças”, conta Désirée.
Além de apoio emocional, o projeto também gera oportunidades reais de geração de renda. Os alunos levaram suas peças para feiras em Matinhos, participaram da Virada Cultural, de exposições no Paço Municipal, na UFPR Litoral e no Grupo Positivo. Uma das instalações mais impactantes, Cardume Caiçara, feita com mais de 300 peixes de vidro fundido, pendurados em fios de nylon, chamou atenção ao unir arte, som e consciência ambiental.
O impacto do projeto ultrapassou fronteiras: em setembro de 2024, a Fundição Guará foi selecionada para representar o Brasil na The Venice Glass Week, maior festival de arte em vidro do mundo, realizado anualmente na Itália.
Interrupção abrupta e falta de resposta do poder público
A iniciativa, que até então contava com apoio da gestão municipal e ocupava espaço público, pode perder sua sede após o encerramento do contrato na Arena Vicente Gurski e, até o momento, não encontrou eco nas portas do novo governo.
“O projeto é oficialmente aprovado pela Lei Rouanet, está em fase de captação e tem potencial de escala nacional. Mas não conseguimos sequer manter a unidade de Matinhos por falta de um espaço com instalação elétrica compatível com o forno trifásico de 70 amperes. Isso é um retrocesso”, afirma a coordenadora.
A Ilha do Mel FM procurou a Prefeitura de Matinhos para esclarecer a situação, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
“Estamos dialogando com vereadores, associações, universidades e a própria comunidade, mas ainda não tivemos retorno concreto da prefeitura”, diz Désirée.
Apelo por continuidade
Com a indefinição da atual administração sobre a destinação de um novo espaço para abrigar o projeto, a Fundição Guará tem mobilizado a comunidade, vereadores, associações e universidades para evitar a paralisação do projeto em Matinhos. “O apoio da população é essencial. Precisamos que a comunidade cobre das autoridades uma solução. A fundição já está implantada em Morretes, e uma nova unidade será aberta em Paranaguá. Mas Matinhos não pode perder esse polo criativo”, afirma Désirée Sessegolo.
Ao mesmo tempo, a coordenadora reforça a necessidade de apoio da iniciativa privada, buscando patrocinadores por meio da Lei Rouanet. “Queremos nos desvincular da dependência do poder público e encontrar empresas que apostem na arte, na inclusão e na sustentabilidade. Com esse apoio, podemos atuar com mais liberdade e segurança, levando esse projeto gratuito para ainda mais pessoas”, conclui.











