Por Luiza Rampelotti
Josinete Soares, de 50 anos, moradora de Paranaguá, sobreviveu a uma tentativa de feminicídio que quase lhe tirou a vida. O crime, cometido por seu ex-companheiro, Joseilton de Barros Rangel, de 53 anos, pai de seu filho de 27 anos, culminou na condenação dele a nove anos, três meses e 15 dias de prisão em regime fechado. O caso, ocorrido em janeiro deste ano, teve seu desfecho no Tribunal do Júri de Paranaguá no último dia 27.
O julgamento e a sentença
Durante a sessão do Tribunal do Júri, composto por sete jurados, foram apresentados elementos que comprovaram a premeditação do crime. Joseilton surpreendeu Josinete em frente à academia onde ela treinava, disparou três tiros contra o carro da vítima – um deles acertando sua perna – e deixou para trás uma mochila contendo coquetéis molotov.
À Ilha do Mel FM, a promotora de Justiça Cláudia Juliana Almeida Erbano destacou a gravidade do caso e os desafios enfrentados pelo Ministério Público no processo. “Neste caso, a vítima sobreviveu e pôde relatar a dinâmica dos fatos e o contexto de violência psicológica e ameaças de morte anteriores, que foram enviadas por áudio e instruíram o processo. O delito foi cometido em local público, apenas cinco dias após a intimação do réu sobre a renovação das medidas protetivas da vítima. Havia testemunhas presenciais dos fatos, e a gravidade do comportamento do agressor era evidente, considerando o uso de arma de fogo e o transporte de garrafas de coquetel molotov até o local”, afirmou.
No entanto, de acordo com a promotora, a defesa de Joseilton defesa tentou desqualificar a acusação, alegando que se tratava de um crime menos grave, como disparo de arma de fogo ou lesão corporal. “Os maiores desafios foram as estratégias apresentadas pela defesa do acusado, que buscavam distorcer a realidade e afastar sua responsabilidade criminal pelo crime intencional contra a vida da vítima, alegando que se tratava apenas de crimes menos graves, como disparo de arma de fogo, lesão corporal e descumprimento de medida protetiva de urgência”, disse.
Cláudia ainda explicou que a denúncia foi construída com base em um robusto conjunto de provas e no depoimento da vítima, que detalhou o ciclo de violência psicológica e ameaças que precederam o ataque. “Demonstramos aos jurados que o crime fazia parte de uma escalada de violência baseada no gênero. Joseilton quase consumou o ápice desse ciclo, que é o feminicídio”, disse.
A importância da legislação de feminicídio
A promotora destacou o impacto da legislação sobre feminicídio no caso, explicando que o crime foi classificado como homicídio qualificado devido à condição do sexo feminino, envolvendo violência doméstica e familiar. Segundo ela, essa tipificação garante penas mais severas em comparação ao homicídio simples, cuja pena varia entre 6 e 20 anos. No caso do homicídio qualificado, a punição vai de 12 a 30 anos.
Cláudia ressaltou ainda que a relação familiar facilita a comprovação do contexto em que muitas mulheres são assassinadas, possibilitando uma resposta mais compatível com a gravidade desses crimes. “São casos que acontecem no ambiente familiar, onde essas mulheres deveriam ser protegidas, e não vitimadas“, afirmou.
Ela também lembrou que uma alteração legislativa recente, a Lei 14.994/2024, aumentou as penas para feminicídio, que agora variam de 20 a 40 anos. No entanto, essa nova regra não se aplica a crimes cometidos antes de sua vigência, iniciada em outubro de 2024.
Apesar da sentença, o Ministério Público acredita que a pena de Joseilton não refletiu completamente a gravidade do crime e já recorreu da decisão para aumento da resposta penal.
Relato da vítima
Josinete falou com exclusividade à Ilha do Mel FM sobre os anos de abuso psicológico e controle emocional que viveu durante as três décadas de relacionamento. “Sempre houve ciúmes e possessividade. Ele queria decidir aonde eu ia, o que eu fazia. E eu achava que era cuidado, que ele só queria o meu bem. Só depois percebi que estava em um relacionamento abusivo”, relatou.
Ela destacou que sua independência financeira e emocional foi um ponto de ruptura para Joseilton. “Quando comecei a dirigir, ele ficou paranoico. Dizia que eu estava ‘querendo demais’, que eu tinha mudado. Foi aí que as ameaças começaram a piorar”.
O dia do crime é uma lembrança difícil de superar. “Ele sempre ameaçava, mas eu nunca acreditei que fosse capaz de algo assim. No dia, ele disparou três vezes contra mim, que estava dentro do carro. Graças a Deus, só um tiro me acertou, de raspão na perna. Ele tentava abrir a porta do carro e eu segurava pelo lado de dentro, não sei de onde tirei tanta força, mas no dia seguinte meu braço estava inchado e roxo. Quando vi que ele saiu, corri para dentro da academia, mas até hoje me pergunto o que teria acontecido se os outros tiros tivessem me atingido”, desabafou.
Um alerta às mulheres
Josinete vê na sua experiência uma oportunidade de alertar outras mulheres. “Eu demorei muito para entender o que estava acontecendo. Sempre achava que era coisa da minha cabeça, que o problema era comigo. Hoje, digo: se observarem sinais de controle, ciúmes excessivos, denunciem. Não deixem para depois. Eu tive sorte de sobreviver, mas muitas não têm”, disse.
Ela enfatiza a importância da independência emocional e financeira. “Foi isso que me ajudou a sair dessa relação. Mesmo com todo o trauma, eu sabia que podia me reerguer porque tinha minha própria renda, meu próprio trabalho. Esse é o primeiro passo para qualquer mulher: conquistar sua autonomia”.
A condenação de Joseilton foi vista pela promotora Cláudia Juliana como um exemplo de como o Sistema de Justiça pode e deve atuar nesses casos. “Decisões como esta são uma mensagem clara para as vítimas: elas não estão sozinhas, podem contar com o Sistema de Justiça e com sua comunidade. Essas decisões mostram que os atentados contra suas vidas não ficarão impunes, que a sociedade não aceita a violência contra a mulher e que elas poderão ter, ao menos, um mínimo de paz enquanto o agressor cumpre a pena criminal”, disse.
Denuncie
A promotora ainda destacou a complexidade do enfrentamento à violência contra a mulher, ressaltando que, em muitos casos, as agressões enfrentam subnotificação. “As vítimas costumam buscar ajuda apenas após vivenciarem episódios repetidos de agressão. Quando procuram as autoridades e registram a ocorrência, raramente se trata do primeiro ato de violência“, afirmou.
No caso específico da tentativa de feminicídio, Cláudia explicou que, por ser uma agressão mais evidente e com vestígios, o principal problema não é a subnotificação, mas o reconhecimento adequado do crime. “É essencial que seja tratado como um delito contra a vida, com a gravidade que merece, e não como algo menos grave“, reforçou.
Segundo a promotora, um dos desafios enfrentados no caso de Josinete foi a tentativa da defesa de desqualificar o crime. “Mesmo com inúmeras provas de um crime intencional contra a vida, a defesa do agressor tentou desqualificar a tentativa de feminicídio, alegando que ele não pretendia matar a vítima, mas apenas assustá-la com disparos de arma de fogo e coquetéis molotov“, relatou.
Ao final da entrevista, Josinete, sobrevivente da tentativa de feminicídio, fez um apelo emocionado às mulheres que enfrentam situações semelhantes. “Se você está vivendo algo parecido, denuncie. Procure ajuda. Ligue para o 180, vá até a delegacia. Eu demorei muito, mas consegui sair. Não espere que seja tarde demais. Hoje, eu só quero viver em paz“, concluiu.
A defesa
Após o julgamento, os advogados de Joseilton, Lucas Santiago e Ali Ahmad El Laden, enviaram à Ilha do Me FM uma nota ressaltando que pretendem recorrer para buscar a redução da pena. “Apesar da gravidade das acusações e das provas apresentadas, conseguimos afastar uma das qualificadoras atribuídas ao crime, resultando em uma pena consideravelmente reduzida ao acusado. Oportuno consignar que a qualificadora afastada foi a do recurso que dificultou a defesa da vítima. Durante o julgamento obtivemos êxito em demonstrar que tal qualificadora não estava presente, que era um excesso acusatório, e os jurados entenderem dessa forma. Ressalto que nosso objetivo foi resguardar os direitos do acusado e garantir um julgamento justo, buscando esclarecer os fatos e afastar interpretações que agravassem desproporcionalmente a conduta do denunciado”, declararam.