Por Luiza Rampelotti
Sob o pretexto de assegurar dignidade a famílias em situação de vulnerabilidade social, o Projeto de Lei nº 053/2025 foi aprovado em primeira votação pela Câmara de Matinhos na última segunda-feira (30). A proposta garante o direito à ligação de água potável e energia elétrica em áreas ocupadas irregularmente, desde que o morador comprove residência habitual e situação de vulnerabilidade social.
Apesar da retórica socialmente justa, o projeto legislativo aprovado ignora uma legislação municipal em vigor desde 2020, a Lei nº 2.147/2020, que já regulamenta a instalação desses serviços em áreas consolidadas, impondo critérios ambientais, urbanísticos e fundiários mínimos. A nova proposta, mais permissiva, não revoga a lei anterior nem esclarece como será compatibilizada com ela, gerando um possível conflito jurídico e institucional que pode travar sua aplicação na prática.
“Dignidade não pode esperar”, defende autor
O vereador Leandro Bertotti (PSDB), autor da proposta, afirmou que o objetivo do projeto é garantir condições mínimas de dignidade a famílias que já vivem em situação de vulnerabilidade e que, muitas vezes, sequer conseguem matricular seus filhos na escola por não possuírem conta de água ou luz em seu nome.
“Não é projeto para morador de rua. É para quem já tem uma casa, já vive no local, já está estabelecido. A falta de água e luz coloca em risco a saúde dessas pessoas e impede sua inclusão no sistema formal. Ter acesso a esses serviços vai gerar inclusive mais arrecadação para o Município, com taxas de lixo e iluminação pública. Estamos falando de dignidade”, explicou o parlamentar.
Garantir dignidade ou contornar a lei?
A proposta de Bertotti prevê que o fornecimento de luz e água poderá ser autorizado pelo Poder Executivo, mesmo em áreas com situação fundiária irregular, desde que o morador comprove habitação contínua por 12 meses e laudo técnico da assistência social comprovando a vulnerabilidade social. A justificativa aponta que o acesso a esses serviços é uma condição básica de vida digna e de inclusão social.
Mas, na prática, a proposta simplifica um problema complexo e contorna exigências técnicas e legais estabelecidas justamente para evitar a consolidação de ocupações irregulares em áreas ambientalmente frágeis ou juridicamente indefinidas. A lei de 2020, por exemplo, exige posse por pelo menos três anos, além de proibir ligações em áreas públicas, margens de rios, áreas de proteção ambiental e loteamentos clandestinos – temas ausentes no novo projeto.
Estímulo a novas ocupações
Apesar de todos os parlamentares terem votado favoravelmente à proposta, houve discussões sobre os possíveis efeitos colaterais da proposta. O vereador Sandro do Gás (PSD) alertou para o risco de o projeto ser interpretado como um estímulo à consolidação de ocupações irregulares, sobretudo em áreas de veraneio.
Segundo ele, muitas dessas ocupações não abrigam famílias em vulnerabilidade, mas sim moradores sazonais de outras cidades, que instalam “gatos” para ter acesso irregular aos serviços. “A nossa cidade tem quase 60% de ocupações irregulares. Algumas são casos sociais, sim, mas muitas são de veraneio. Casas fechadas o ano inteiro, que recebem moradores apenas no verão. Isso precisa ser combatido. Água e luz são essenciais, mas precisamos garantir que o benefício seja para quem realmente precisa, quem vive e contribui com o Município”, disse Sandro, destacando ainda que há um histórico de pressão do Ministério Público para impedir a expansão de ligações em áreas não regularizadas.
Durante a sessão legislativa, os discursos dos vereadores deixaram claro que o projeto toca em uma ferida urbanística mal resolvida. O vereador Nelinho Lourenço (PRTB), por exemplo, considerou o prazo de 12 meses curto demais. “Temos que pensar também naqueles que são donos dos terrenos. Um cidadão sai da cidade, volta depois de um ano, e encontra outra pessoa morando com água e luz instalados. Como fica o direito à propriedade nesse caso?”, questionou. A emenda da Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJ) que estendia o prazo mínimo para 36 meses foi rejeitada.
Projeto avança sem responder à legislação vigente
Além das lacunas técnicas e jurídicas, o PL 053/2025 avança sem estabelecer como será compatibilizado com a Lei nº 2.147/2020. Esta, por sua vez, é clara: para haver ligação de água ou luz, o imóvel precisa estar em área regular ou consolidada, com pelo menos três anos de edificação, fora de áreas de proteção ambiental, e sem impedimentos urbanísticos.
A legislação de 2020 foi aprovada justamente após recomendações do Ministério Público do Paraná (MPPR), diante do aumento das ocupações em áreas ambientalmente sensíveis e da ausência de controle urbano. Em vez de revogar ou atualizar essa lei, o novo projeto simplesmente a ignora.
O resultado é uma sobreposição de normas que tende a gerar insegurança jurídica e dificultar o trabalho das concessionárias. “Existe uma lei que regula isso desde 2020, e ela exige registro de imóveis ou escritura pública. Fora disso, mesmo que o cidadão esteja há 20 anos no local, não pode ter água e luz. É o que diz a lei”, alertou Sandro do Gás durante a sessão.
O vereador Juliano Leite (Republicanos) reconheceu que há um impasse, mas defendeu que o novo projeto, ao estabelecer critérios sociais e envolver a assistência social na triagem dos pedidos, pode aprimorar o processo. “O projeto não facilita usucapião, não concede propriedade, e ainda exige avaliação técnica. É um avanço no sentido de tratar com humanidade um problema real. Precisamos, sim, rever o Plano Diretor e discutir de forma mais ampla o direito à cidade”, destacou.
Aprovado por unanimidade em primeira votação, o PL 053/2025 será ainda submetido a uma segunda deliberação antes de seguir para sanção do Executivo.








